Nobel Osheroff: o Descobridor da Superfluidez do Hélio-3

O Prêmio Nobel de Física (PNF) de 1996 foi concedido aos físicos norte-americanos David Morris Lee (n.1931), Robert Coleman Richardson (n.1937) e Douglas Dean Osheroff (n.1945) pela descoberta da superfluidez do hélio-3 (2He3). Quando criança, Lee era fascinado por bichinhos (rãs, peixes, salamandras, cobras, minhocas etc.). No entanto, depois de se interessar por estradas de ferro e por meteorologia, em certo dia de sua adolescência, deparou-se, na biblioteca de seu pai, com o livro The Misterious Universe (Cambridge University Press, 1930) do astrofísico inglês Sir James Hopwood Jeans (1877-1946). Foi a leitura desse livro que o levou a interessar-se pela Física. Depois de concluir, em 1948, a High School (Segundo Grau), em Rye, pequena localidade suburbana de sua cidade natal, New York, Lee foi estudar Física na Harvard University, em Boston, onde se bacharelou, em janeiro de 1952. Em abril desse mesmo ano, alistou-se no Exército Norte-Americano, que estava envolvido na Guerra da Coréia (1950-1953). Certa noite, quando servia como cabo-da-guarda, encontrou–se com o soldado norte-americano Herbert Fried, que fora estudante de pós-graduação do físico norte-americano Paul Zilsel (1923-2006), na University of Connecticut, especialista em superfluidez. Foi nessa ocasião que os dois tiveram uma longa conversa sobre a superfluidez do hélio-4 (2He4), na temperatura de aproximadamente de 2,19 K, que havia sido descoberta, em 1938, independentemente, pelo físico russo Pyotr Leonidovich Kapitza (1894-1984; PNF, 1978), e pelos físicos, o canadense John Frank Allen (1908-2001) e o norte-americano Austin Donald Misener (1911-1996).
A conversa com Fried e a mudança de seus pais para Connecticut fizeram Lee entrar para a Universidade dessa cidade, em fevereiro de 1954, logo que deixou o Exército Norte-Americano. Nessa Universidade, fez amizade com o estudante graduado John D. Reppy, que trabalhava no grupo experimental que desenvolvia pesquisas em superfluidez em baixa temperatura, do qual participava o físico norte-americano Charles Reynolds. Foi esse físico quem fez Lee interessar-se por aquele tipo de pesquisa física (superfluidez). Depois de completar o Mestrado em Ciência, em Connecticut, inscreveu-se no Programa de Doutoramento no Departamento de Física da Yale University (YU), no verão de 1955. Seu orientador de tese foi o físico norte-americano Henry A. Fairbank, um dos pioneiros na pesquisa do 2He3, e o primeiro tema de seu trabalho de Tese foi o de medir a condutividade térmica desse isótopo do He líquido. Contudo, no decorrer dessa medida, Lee fez uma observação inesperada, qual seja, que a densidade desse líquido se tornava máxima em torno da temperatura Tm ~ 0,5 K, e que tornava o coeficiente de expansão térmica κ < 0. Note-se que esse trabalho de Lee com Fairbank foi publicado em 1959 (Physical Review 115, p. 1359). Em janeiro de 1959, depois de obter o título de Doutor em Física pela YU, Lee foi para o Departamento de Física da Cornell University, em Ithaca, no Estado de New York, com a função de montar um Laboratório de Física de Baixa Temperatura e ser professor desse Departamento. Na criação desse Laboratório, Lee contou com a participação de seu antigo amigo Reppy e de Richardson, que viera da Duke University. Foi ainda nesse Laboratório que recebeu Osheroff como aluno de pós-graduação. Juntos, Lee, Richardson e Osheroff realizaram a célebre descoberta que os levaram ao Nobelato. Antes de tratar dessa descoberta, vejamos alguns aspectos da carreira científica de Richardson e de Osheroff. Depois de concluir a Washington-Lee High School, Richardson entrou para o Virginia Polytecnic Institute (VPI), no outono de 1954. Nesse Instituto, ele entrou, compulsoriamente, no ROTC (Reserve Officers Training Corps), em seu Corpo de Cadetes, como estudante de Engenharia Elétrica. Contudo, logo se entediou de tanto aplicar as leis de Kirchhoff (descobertas no período 1845-1847) na solução de circuitos elétricos, e resolveu, então, graduar-se em Química. Seu daltonismo (trocar cores), no entanto, tornou difícil o estudo das análises qualitativas das substâncias. Desse modo, ele, finalmente, terminou seu College como físico. Depois de iniciar um projeto de Mestrado em Física, no VPI, no qual permaneceu um ano, Richardson foi realizar seu Serviço Militar no Exército Norte-Americano, entre novembro de 1950 e maio de 1960, no Ordinance Corps, em Aberdeen Proving Ground, no Estado de Washington. O trabalho rotineiro de conduzir um pelotão (platoon) fez Richardson decidir-se, no outono de 1960, em fazer Doutoramento em Física, na Duke University, North Caroline, sob a orientação do físico Horst Meyer. Assim, com auxílio do físico Earl Hunt, concluiu, em 1965, sua Tese de Doutoramento (defendida em 1966), na qual aplicou a técnica da NMR (Nuclear Magnetic Resonance) (descoberta em 1946) no estudo da interação de troca do 2He3 sólido. Registre-se que Richardson, Hunt e Meyer apresentaram os resultados desse estudo, em 1965 (Physical Review A138, p. 1326). Por fim, na primavera de 1966, Richardson foi para a Cornell University trabalhar com Lee e Reppy, no Laboratory of Atomic and Solid State Physics dessa Universidade, no qual Lee dirigia o Laboratório de Física de Baixa Temperatura, como falamos antes. Registre-se que, em 1975, Richardson foi indicado Professor de Física daquela Universidade. Durante sua infância e adolescência, Osheroff sempre se ocupou com trabalhos relacionados à Eletricidade, Mecânica e Química. Em seu último ano no High School, em sua cidade natal, Aberdeen, no Estado de Washington, construiu uma máquina de raios-X de 100 keV. Osheroff realizou seu College (Terceiro Grau) no CALTECH (California Institute of Technology), em Pasadena, no Estado da Califórnia. Neste Instituto, ele foi estimulado a trabalhar na então Física do Estado Sólido (hoje, Física da Matéria Condensada) ao participar com os físicos norte-americanos Don McCullum e Walter Ogier, em uma experiência para atingir a temperatura de 0,5 K com um filme superfluido imerso em um banho de He. Depois de graduado no CALTECH, Osheroff decidiu realizar sua pós-graduação na Cornell University, trabalhando com Lee e Richardson. Foi nessa ocasião que, em novembro de 1971, eles realizaram a notável descoberta da superfluidez do hélio-3, usando a cavidade Pomeranchuk (Pomeranchuk cell) (ver adiante). Vejamos como eles chegaram a essa descoberta. Conforme vimos antes, Kapitza e, independentemente, Allen e Misener anunciaram, em 1938, a descoberta da superfluidez do hélio-4, na temperatura aproximada de 2,19 K. Também em 1938, os físicos norte–americanos Hans Albrecht Bethe (1906-2005; PNF, 1967) (de origem alemã) e Charles Louis Critchfield (1910-1914) anunciaram a possível existência do 2He3, cuja descoberta oficial só foi anunciada em 1939, ano em que eclodiu a Segunda Guerra Mundial. Em virtude dessa Guerra, as pesquisas sobre esse raro isótopo do He só se intensificaram depois de seu término, em 1945, como subproduto do programa de produção de bombas atômicas e nucleares. Assim, dentro desse programa, esse isótopo foi obtido pelo decaimento beta do trítio (1H3 → 2He3 + e- + , em notação atual), nas experiências realizadas, em 1949 (Physical Review 75, p. 1103), por E. R. Grilly, E. F. Hammel e S. G. Sydoriak. Logo em 1950 (Zhurnal Eksperimental´noi i Teoretiskoi Fiziki 20, p. 919), o físico russo Isaak Yakovlevich Pomeranchuk (1913-1966) sugeriu que temperaturas baixas poderiam ser obtidas solidificando o 2He3 por compressão adiabática do estado líquido desse isótopo do He. Observe-se que, nessa ocasião, ainda não havia sido obtido esse estado líquido. Segundo Pomeranchuk, em baixas temperaturas, o hélio-3 líquido, por possuir spin fracionário em seu núcleo composto de dois prótons (p=1H1) e um nêutron (0n1), se tornaria um fluido fermiônico degenerado, com sua entropia (S) dependendo linearmente da temperatura (T). Esse processo de resfriamento ficou conhecido como efeito Pomeranchuk ou resfriamento Pomeranchuk. Logo em 1951, o físico alemão Heinz London (1907-1970) apresentou a ideia de que temperaturas estáveis, na região de milikelvins (1 mK = 10-3 K), poderiam ser obtidas usando-se um novo tipo de refrigerador – refrigerador de diluição -, baseado nas propriedades das misturas de 2He3 e 2He4. Mais tarde, em 1956 (Zhurnal Eksperimental´noi i Teoretiskoi Fiziki 30, p. 1058), o físico russo Lev Davidovich Landau (1908-1968; PNF, 1962) formulou sua famosa teoria do líquido quântico de Fermi para explicar as propriedades do hélio-3 líquido. Quando Lee chegou à Cornell University, em 1959, uma de suas primeiras missões, como destacamos acima, foi a de montar um Laboratório de Baixa Temperatura. Com ele montado, objetivava estudar o He, principalmente investigar as propriedades do 2He3 líquido em temperaturas abaixo de 1 K. Note-se que um dos resultados importantes obtidos por Lee nesse laboratório foi a experiência realizada com F. P. Lipschultz com a qual fizeram a primeira observação do som transversal no 2He4 sólido, em 1965 (Physical Review Letters 14, p. 1017). Foi por essa ocasião que Lee começou a pensar na construção de uma cavidade Pomeranchuk, baseada no efeito Pomeranchuk, para conseguir temperaturas cada vez mais baixas, seguindo a sugestão apresentada por seu orientador Fairbank, quando ainda trabalhava na Yale University. A ideia dessa construção foi discutida com os físicos Paul Craig, Thomas Kitchens, Myron Strongin e Victor Emery, no Brookhaven National Laboratory, por ocasião em que Lee realizava o seu ano sabático 1966-1967. É oportuno registrar que o físico russo Yuri D. Anufriyev, em 1965 [Journal of Experimental and Theoretical Physics (JETP) Letters 1, p. 155], já havia iniciado a construção de sua cavidade Pomeranchuk, com a qual obteve a temperatura da ordem de 20 mK. De volta a Cornell, Lee, com a colaboração de Reppy e Richardson e, também, dos estudantes de doutoramento James R. Sites, Linton R. Corruccini e Osheroff, começou a construir um refrigerador de diluição diluindo o 2He3 líquido em 2He4 superfluido, para obter temperatura da ordem de 15 mK; esse refrigerador serviu de plataforma para a futura Cornell Pomeranchuk Cell. Com esse equipamento, Sites, Osheroff, Richardson e Lee realizaram experiências sobre a medida da suscetibilidade magnética da fusão do 2He3, em temperaturas em torno da transição de fase magnética nuclear desse isótopo do He, que são da ordem de 2 mK. Essas experiências, cujos resultados se tornaram a base da Tese de Doutoramento de Sites, foram publicadas em 1969 (Physical Review Letters 23, p. 836). Observe-se que temperaturas menores do que 2 mK foram conseguidas pelo grupo de John C. Wheatley da University of California, San Diego (La Jolla), em experiências também realizadas em 1969 (Physical Review Letters 22, p. 449), com a participação de R. T. Johnson, R. Rosenbaum e O. G. Symko, e em 1970 (Journal of Low Temperatures Physics 2, p. 403), com esse mesmo grupo acrescido do físico finlandês Olli V. Lounasmaa (1930-2002). Nessas experiências, Wheatley melhorou o equipamento de Anufriyev. Por volta de 1970, Lee e Richardson, com a participação de Osheroff e Corruccini, começaram a testar a previsão teórica que havia sido feita pelos físicos norte-americanos Anthony J. Leggett (n.1938; PNF, 2003) (de origem inglesa) e Michael John Rice (1940-2002), em 1968 (Physical Review Letters 20; 21, p. 586; 506) e confirmada por Leggett, em 1970 (Journal of Physics C3, p. 448), sobre os efeitos de campos moleculares no comportamento do resfriamento do 2He3 enquanto líquido fermiônico, efeitos esses conhecidos como o fenômeno da difusão do spin. Para realizar aquele teste, Corruccini, com a colaboração de Osheroff, desenvolveu, como seu projeto de Tese de Doutoramento, um equipamento para resfriar, com uma Pomeranchuk cell, o 2He3 líquido em temperaturas abaixo de 6 mK. O equipamento funcionou e, com ele, confirmaram a previsão de Leggett-Rice, conforme artigo publicado por Corruccini, Osheroff, Lee e Richardson, em 1971 (Physical Review Letters 27, p. 650). Uma nova confirmação foi por eles apresentada em 1972 (Journal of Low Temperatures Physics 8, p. 119). Depois de participar dessas experiências, Osheroff começou a desenvolver a sua própria Pomeranchuk cell como projeto de Tese de Doutoramento e, com ela, checar um novo resultado obtido por Johnson, R. E. Rapp e Wheatley, em 1971 (Journal of Low Temperatures Physics 6, p. 445), relacionado com uma depressão observada na curva de pressão de fusão do 2He3 sólido, o que significava uma magnetização irregularmente larga desse sólido em baixos campos magnéticos. Quando Osheroff, em 24 e 29 de novembro de 1971, estava medindo aquela curva de pressão, em função do tempo, usando um transdutor de pressão capacitiva que havia sido inventado por G. C. Straty e E. D. Adams, em 1969 (Review of Scientific Instruments 40, p. 1393), Osheroff percebeu que, na temperatura que havia estimado para realizar aquela medida, em torno de 2,6 mK, haviam dois pontos nessa curva de pressão versus tempo, denominados por ele de A e B, nos quais havia uma mudança de sua deflexão, sendo que, no ponto B, havia uma brusca queda na pressão. Esse resultado aparentemente “acidental” foi discutido por Osheroff, com Richardson e Lee, e juntos resolveram escrever um artigo sobre ele, e que foi publicado, em 1972 (Physical Review Letters 28, p. 885). Esse artigo é hoje reconhecido por haver anunciado a descoberta da superfluidez do hélio-3, na temperatura de 2,7 mK. Registre-se que essa descoberta foi confirmada por Osheroff, Willie J. Gully, Richardson e Lee, ainda em 1972 (Physical Review Letters 29, p. 920); por Anufriyev, T. A. Alvesalo, H. K. Collan, N. T. Opheim e P. Wennerström, em 1973 (Physics Letters A43, p. 175); e por Alvesado, Anufriyev, Collan, Lounasmaa e Wennerström, ainda em 1973 (Physical Review Letters 30, p. 962). Note-se que essa descoberta recebeu explicações teóricas de Leggett, em 1972 (Physical Review Letters 29, p. 1227), em 1973 (Journal of Physics C: Solid State Physics 6, p. 2187; Physical Review Letters 31, p. 352), em 1974 [Annals of Physics (New York) 85, p. 11], e em 1975 (Reviews of Modern Physics 47, p. 331). É oportuno destacar que, depois de defender sua Tese de Doutoramento, em 1973, na Cornell University, Osheroff foi trabalhar nos Bell Laboratories, em Murray Hill, New Jersey, ficando lá até 1987, quando então aceitou a posição de Professor na Stanford University. Enquanto pesquisava na Bell, Osheroff continuou trabalhando com o 2He3 sólido em busca de entender melhor o que havia descoberto em 1971. Desse modo, ele foi levado a uma outra grande descoberta. Com efeito, na Cornell University, Richardson realizava experiências para estudar novas propriedades do 2He3 superfluido usando uma nova Pomeranchuk cell construída como decorrência do trabalho de seu aluno de doutoramento William P. Halperin. Em duas dessas experiências, Richardson, Halperin, C. N. Archie, F. B. Rasmussen, R. A. Buhrman e Richardson, em 1974 (Physical Review Letters 32, p. 927), e Halperin, Archie, Rasmussen e Richardson, em 1975 (Physical Review Letters 34, p. 718), observaram uma queda na entropia do spin do 2He3 sólido quando a temperatura era da ordem de 1 mK. Em 1980 (Physical Review Letters 44, p. 789), Osheroff, Michael C. Croos e Daniel S. Fisher descobriram que aquela queda decorria de uma ressonância antiferromagnética na fase ordenada do spin nuclear do 2He3 sólido. Eles observaram que a orientação dos planos ferromagnéticos de spins desse sólido se alternava, ora dois planos para cima (up), ora dois planos para baixo (down). Eles denominaram essa fase ordenada de U2D2, significando up2down2, para homenagear o famoso robot R2D2 do filme Guerra nas Estrelas (“Star Wars”), em cartaz por essa ocasião. Destaque-se, por fim, que novos aspectos da vida, bem como de trabalhos realizados por Lee, Richardson e Osheroff, depois da descoberta da superfluidez do hélio-3, encontram-se em suas respectivas Autobiografias e Nobel Lectures: David Morris Lee, The Extraordinary Phases of Liquid 3He (07 de Dezembro de 1996); Douglas Dean Osheroff, Superfluidity in 3He: Discovery and Understanding (07 de Dezembro de 1996); Robert Coleman Richardson, The Pomeranchuk Effect (07 de Dezembro de 1996). (e-Nobel Museum). Nota: Esse artigo é para o leitor saber quem o ilustre visitante que a UFPA receberá, no próximo dia 10 de junho, para realizar uma Conferência sobre as relações entre Ciência e Tecnologia.

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