O Instituto Central de Física Pura e Aplicada da Universidade de Brasília, em 1965

Em 1965, o Instituto Central de Física Pura e Aplicada da Universidade de Brasília (ICFPA/UnB) era dirigido pelo professor Jayme Tiomno (1920-2011). Esse Instituto fazia parte do Instituto Central de Ciências (ICC), coordenado pelo professor Roberto Aureliano Salmeron. Por indicação do professor Tiomno, cheguei ao ICFPA/UnB em março de 1965, para realizar o Bacharelado em Física. Eu era engenheiro civil formado, em 1958, pela então Universidade do Pará e professor de Física do Núcleo de Física e Matemática dessa Universidade. Nesse Instituto, foram meus professores: Salmeron (Física Atômica I), Tiomno (Eletromagnetismo I, II), Dione Craveiro Pereira da Silva (Eletrônica Básica I, II), Fernando de Souza Barros (Física Atômica II) e Marco Antônio Raupp (Variáveis Complexas e Matemática para Físicos). Também ensinavam nesse mesmo Instituto (infelizmente, não estudei com eles), os professores Elisa Frota Pessôa e Ramiro de Porto Alegre Muniz, e os professores estrangeiros: a argentina Suzana Leher de Souza Barros (1929-2011) e os franceses Michel Paty e Georges Durupthy. Além de mim, estudavam no ICFPA/UnB, os seguintes alunos: o potiguar Marcos Duarte Maia; o goiano Miguel Taube Netto; o mineiro Miguel Armony; os cariocas Cássio Sigaud Filho, Jaime Warszawski, João Carlos dos Anjos, José Carlos Valladão de Mattos, Maria Helena Poppe de Figueiredo, Mário Novello, Miriná Barbosa de Souza, Renato Parreiras Horta Laclette, Sérgio Joffily e Sônia Frota Pessoa; os paulistas Antônio Rubens Britto de Castro e Luiz Augusto Discher de Sá; os gaúchos Carlos Carreta e Moacyr Henrique Gomes e Souza; os paranaenses José Medina e Walter Cordeiro Skroch; os cearenses José Francisco Julião e Newton Theophilo de Oliveira; os mineiros Carlos Alberto Ferreira Lima e Luís Tahuata; o amazonense Alberto Franco de Sá Santoro; e os paraenses Antônio Fernando dos Santos Penna, Antônio Gomes de Oliveira, Augusto José Dias, Carlos Alberto da Silva Lima, Luís Fernando da Silva, Marcelo Otávio Caminha Gomes e Sérgio Cavalcante Guerreiro. Além desses alunos brasileiros, estudavam, também, os estrangeiros: o nicaragüense Oscar Jimenez; o equatoriano Manoel Villavicencio Vivas; o boliviano Angel Pérez Saavedra; e o argentino Carlos Alberto Garcia Canal. Nossa vivência como estudante na UnB teve vários episódios marcantes na minha vida. Vou registrar alguns deles.
Eu, juntamente com Antônio Oliveira, Augusto Dias, Carlos Lima, Fernando Penna, Luís Fernando, Marcelo Gomes, Mário Novello, Renato Laclette e mais o paraense, Manoel Viégas Campbell Moutinho, que estudava no Instituto Central de Matemática, morávamos em uma “república”, em cima da Padaria Bambina, na Avenida W-3 Sul, com entrada pela rua W-2 Sul. Na outra “república”, também em cima dessa Padaria, porém com entrada pela Avenida W-3 Sul, moravam o Angel, o Villavicencio, o Jimenez, o Newton Theophilo, o Julião e o Guerreiro. Nosso deslocamento para o campus da UnB, situado na Asa Norte do Plano Piloto, era feito no ônibus apelidado “Ziriguidum”, que levava estudantes e funcionários. Ele passava geralmente em torno de sete horas da manhã pela W-3 Sul. Por volta de seis e meia, ele aparecia nessa Avenida, vindo da UnB, e ia até o seu final. Assim, quando ele era visto por algum colega que se encontrava tomando banho no único banheiro da “república”, ele imediatamente gritava: – Pessoal, o “Ziriguidum” está vindo. Vamos nos apressar para não perdermos o transporte. Ainda nessa “república”, lembro-me dos palavrões que o saudoso Penna dizia para os padeiros que, ao começarem a fazer pães, cerca de três horas da manhã, cantavam a música do saudoso Altemar Dutra (de Oliveira) (1940-1983), Sentimental Demais: Sentimental eu sou/ Eu sou demais/ Eu sei que sou assim/ Porque assim ela me faz/ As músicas que eu/ Vivo a cantar/ Têm o sabor igual/ Por isso é que se diz/ Como ele é sentimental/ Romântico é sonhar/ E eu sonho assim/ Cantando estas canções/ Prá quem ama igual a mim/ E quem achar alguém/ Como eu achei/ Verá que é natural/ Ficar como eu fiquei/ Cada vez mais/ Sentimental. Aliás, nas proximidades dessa Padaria, ficava o Restaurante Roma, onde íamos almoçar todos os domingos e sempre éramos atendidos pelo garçom Francisco. Comíamos frango, com acompanhamentos diferentes: farofa, batata frita, purê de batata, talharim etc., regado com vinho tinto, da marca Precioso. A entrega do prato para cada um de nós era assim enunciada pelo Seu Francisco: – Um frango com farofa, para o senhor. Um frango com fritas, para o senhor. E assim sucessivamente. E complementava: Logo trarei o Precioso para os senhores.
Nossa vida como alunos do ICFPA/UnB foi bastante dura. Eu, por exemplo, além de resolver cerca de quarenta (40) exercícios por semana, das disciplinas que eu cursava, tinha, ainda, como Instrutor (juntamente com o Carlos Lima e o Miguel Armony) do professor Salmeron, das disciplinas Física I, II, de corrigir em torno de seiscentos (600) exercícios de seus quase duzentos (200) alunos. Essa vida dura, principalmente na solução de meus exercícios, levou-me à seguinte conversa com meu colega Sérgio Joffily: – É, Sérgio, quando se começa a errar a solução de um problema, não se acerta nunca. Essa frase era lembrada pelo Sérgio, sempre que nos encontrávamos no Centro Brasileiro de Pesquisas Físicas (CBPF), no Rio de Janeiro, onde ele trabalha. Contudo, recentemente, ele me disse: – Bassalo, depois que li a autobiografia do Wheeler (John Archibald Wheeler and Kenneth Ford, Geons, Black Hole, and Quantum Foam: A Life in Physics, W. W. Norton & Company, 1998), reformulo aquela sua célebre frase para a seguinte: – Errar logo, para acertar mais rápido.
A vida dura descrita acima era permeada por alguns episódios políticos. Descreverei três deles que se referem à crise político-ideológica que culminou com a demissão em massa de 223 professores, crise essa descrita no livro do professor Salmeron (A Universidade Interrompida: Brasília: 1964-1965, Editora da UnB, 1999/2007) e no depoimento do professor Paty, publicado no livro Roberto Salmeron Festschrift: A Master and A Friend (AIAFEX, 2003). Em uma reunião [com a presença do então Reitor Zeferino Vaz (1908-1981)], na qual se discutia a ideia fixa de os militares radicais “revolucionários’’ banirem da UnB os comunistas “indesejáveis’’ e a conseqüência dessa insensatez para o futuro dos professores e alunos de Física da UnB, o professor Salmeron argumentou sobre o que representaria para o futuro do Brasil a Física que seria desenvolvida na UnB com a chegada do ciclotron, que havia sido prometido pelo General Charles (André Marie Joseph) de Gaulle (1890-1970), então Presidente da França, em visita ao Brasil, em outubro de 1964. Essa argumentação foi tão convincente que levou o meu colega, o gaúcho Carlos Carreta, a fazer o seguinte comentário: – Bassalo, o professor Salmeron é um autêntico dialético-marxista. O outro episódio foi promovido pelos estudantes da UnB, que se manifestavam contra a destruição dessa instituição de ensino. Em uma dessas manifestações, esses estudantes tomaram conta do Restaurante Universitário (“Bandejão”) em protesto pelo crime que os militares estavam cometendo contra a sua Universidade. O professor Salmeron subiu em uma mesa e pediu aos alunos que não cometessem nenhum desatino. Como não foi atendido, arrematou: – Então, vocês não são mais meus amigos. Essa atitude do professor Salmeron provocou o seguinte comentário de Augusto Dias: – Bassalo, o Salmeron é um verdadeiro `gentleman’. As pessoas pisam nele e ele ainda pede desculpas. Essa educação refinada do professor Salmeron seria posta à prova, quando, ao descer no elevador de seu prédio, juntamente com um civil poderoso e ardoroso defensor da ação militar na UnB, gentilmente disse “não’’ ao convite que este lhe transmitira para aceitar as demissões dos professores e, com isso, tornar-se o Reitor da UnB. Esse convite teria sido formulado, segundo esse civil, pelo próprio Presidente da República, o marechal Humberto de Alencar Castelo Branco (1897-1967). O terceiro episódio aconteceu dias depois da invasão militar do campus da UnB, que acontecera no dia 11 de outubro de 1965. Com a expulsão do professor Roberto Las Casas e de mais 15 outros professores, os demais professores da UnB, juntos com alunos e funcionários, fizeram uma reunião, para discutir essas expulsões, que foi iniciada por volta das 8 horas da noite e que terminou no raiar do dia seguinte, 19 de outubro de 1965, e à qual nós “republicanos da Bambina” comparecemos. Depois de muitas discussões, a favor e contra os expurgos [o professor Roberto Lira Filho (1926-1986) era o líder dos defensores dos expurgos], a assembléia foi concluída com o pedido de demissão em massa de 223 dos professores da UnB, correspondendo a 80% do corpo docente.
Registro, agora, dois episódios hilariantes. O primeiro aconteceu, provavelmente, em setembro de 1965. Certo dia, o professor Salmeron entrou risonho no ICC. Perguntamos a razão de sua descontração e ele respondeu: – Imaginem que o Laerte Ramos de Carvalho (1922-1972) nos mostrou, agora, na Reitoria, que estava recebendo de professores estrangeiros uma série de telegramas de congratulações pela sua atitude. Esse professor paulista, que viera substituir o professor Zeferino para destruir a UnB, no dia 01 de setembro, não entendia, observou o professor Salmeron, que esses professores estrangeiros estavam convencidos de que o Reitor defendia a sua Universidade (como é natural) contra a intervenção militar, e nunca poderiam conceber que ele, Reitor, era o próprio veículo dessa intervenção. O outro episódio ocorreu por ocasião da Edição do Ato Institucional Número 2, no dia 27 de outubro de 1965, que dissolveu os partidos políticos. Estávamos reunidos em uma sala, eu e vários colegas, para ouvir pelo rádio a edição desse Ato. Ao término da fala do Presidente Castelo Branco, o Jimenez virou-se para mim e disse: – Bassalo, la demócracia em su país rapa, non se fue, sino que murio.
Por fim, registro dois outros episódios que mudaram o rumo de minha vida. O primeiro deles aconteceu no dia 6 de setembro de 1965. Eu havia ido para a UnB a fim de estudar Física, deixando minha profissão de engenheiro-rodoviário-calculista, e desejando ser um pesquisador nessa disciplina. Contudo, a crise nessa Universidade deixou-me atônito e sem rumo. E foi sem rumo que saí cedo na manhã daquele dia da “república” onde morávamos, e andei sem saber por onde, pensando na minha situação. De noite, ao regressar para casa, estava com uma dor de cabeça infernal e dores no estômago. Aí, então, fui socorrido por meu colega Novello. Ele saiu comigo, à procura de uma Farmácia, na Avenida W-3 Sul, para comprar remédio. Esse fato marcante foi relembrado por mim ao Novello, quando me encontrei com ele, no CBPF, no Rio de Janeiro. Ao recordar essa sua “atitude samaritana”, ele me disse que, infelizmente, não se lembrava desse dia. Aí, então, eu lhe disse: – Novello tem razão o grande poeta russo Mayakovsky [Vladimir Vladimirovich (1893-1930)] quando disse que as pessoas só se recordam das coisas ruins que acontecem em sua vida. Para mim, aquela situação era muito ruim. Porém, para você, era um gesto de bondade de sua vida, um aspecto marcante de sua personalidade. Aliás, aproveito a oportunidade para registrar que Novello já havia manifestado o seu grande fascínio pelas Relatividades Einstenianas, quando naquele ano de 1965, chegando à nossa “república”, mostrou-me o livro que acabara de adquirir, Principles of Modern Physics (McGraw-Hill, 1959), do físico norte-americano Robert Benjamin Leighton (1919-1997), e que trata daquelas Relatividades logo em seu Primeiro Capítulo. Por fim, o último episódio marcante da frustrada “saga brasiliense” ocorreu na véspera de minha volta para Belém, no final de outubro de 1965. Fomos, eu e alguns colegas de nossa “república”, para a casa de nosso professor, o Raupp. A casa dele estava vazia, pois ele já havia despachado os móveis, utensílios e família de volta para a sua cidade natal, Porto Alegre. Como um verdadeiro gaúcho, ele nos servia vinho colocando o garrafão de cinco litros no ombro direito e derramava o líquido em nossos copos. O vinho que bebíamos era misturado com lágrimas, pela perda da Universidade Utópica de Darcy Ribeiro. Destaco ainda que, como a Universidade havia acabado por demissão voluntária de seus mais de duzentos professores, estes não tiveram nenhuma ajuda financeira para a transferência de residência. Assim, o Raupp teve de vender alguns de seus livros para realizar essa transferência. Lembro-me de que comprei dois livros dele: o Electrodynamics (Academic Press, 1952), do Arnold Sommerfeld, e o famoso livro do Linus Pauling e E. B. Wilson: Introduction to Quantum Mechanics (Addison-Wesley, 1935).

Adendo (22 de junho de 2012): É oportuno destacar que todas as personagens desta saga deram contribuições importantes para o desenvolvimento da Física, na sua geração de conhecimentos e, também, em sua gerência. Sem desmerecer os demais, vou destacar alguns resultados mais relevantes: Alberto Santoro, João dos Anjos e Moacyr Souza participaram da descoberta e confirmação do D0 (1987, 1988, 1989, 1991-1994, 1996), Santoro e Moacyr participaram da descoberta do quark top (1995) e do (2011); João dos Anjos participou da descoberta das partículas e (1996); Mario Novello criou no CBPF, em 1976, o Grupo de Cosmologia e Gravitação (GCG) (a partir de 2003, chama-se de Instituto de Cosmologia, Relatividade e Astrofísica – ICRA) e começou a formular sua famosa Teoria do Universo Eterno (1979, com a colaboração do então seu aluno José Martins Salim); Michel Paty é um dos principais filósofos da ciência do mundo; e Marco Antônio Raupp, como Diretor do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (INPE) participou ativamente do Primeiro Satélite Espacial Brasileiro – o Sistema de Coleta de Dados (SCD-1) – lançado pelo foguete americano Pegasus, em 19 de fevereiro de 1993; no momento, Raupp é o Ministro da Ciência e Tecnologia do Governo do Brasil.

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