MAURÍCIO QUEIMA COELHO DE SOUZA: MÉDICO, INTELECTUAL E “JOKER” (“BRINCALHÃO”) ¹

PERFIS

MAURÍCIO QUEIMA COELHO DE SOUZA: MÉDICO, INTELECTUAL E “JOKER” (“BRINCALHÃO”) ¹

Depois de se formar em Medicina pela então Faculdade de Medicina e Cirurgia do Pará, em 8 de dezembro de 1944, como Prêmio Raul Leite, por ser o primeiro aluno em todo o Curso de Medicina, Maurício foi aos Estados Unidos, em 1945, para sua Residência Médica. Ali, durante dois anos, especializou-se em Tisiologia, no Missouri State Sanatorium, em Mount Vernon, no Estado de Missouri. Voltando a Belém, casou-se, em 18 de dezembro de 1948, com Arlette Pinheiro, com quem teve os filhos Maurício, Maria Alice, Carlos Alberto e Nelson. Até se aposentar, em seu consultório e no serviço público (como médico da Secretaria de Estado de Saúde Pública e do Instituto Nacional de Previdência Social), foi um dos maiores especialistas em tuberculose em Belém do Pará, pois, além de introduzir, de modo pioneiro, as terapias do “pneumotórax” e da cirurgia do nervo frênico na cura daquela doença, manteve-se constantemente atualizado com a matéria de sua especialidade, lecionando-a na Faculdade onde se formou e na Escola de Enfermagem “Magalhães Barata”, pertencendo a Sociedades de Tisiologia do Brasil e dos Estados Unidos, publicando artigos em Revistas Especializadas e nos jornais O Estado do Pará, A Província do Pará, A Vanguarda e Folha do Norte, participando de Congressos Nacionais e Internacionais, e organizando, como Vice-Presidente, a IV Conferência Nortista de Tuberculose, ocorrida em Belém, de 15 a 19 de novembro de 1957. Destaque-se que, por ocasião dessa Conferência, Maurício foi homenageado pelo então Governador do Estado, General Joaquim Cardoso de Magalhães Barata, homenagem retribuída com uma seleta recepção oferecida pelo Maurício em sua residência, da qual participou seu grande amigo, o saudoso médico Henry Kayath.

Conheci o Maurice, nome como era conhecido em Missouri e como eu também o chamava, em 1957, fazendo parte da famosa Varanda do intelectual Machado Coelho, na Praça da República. Nessa época, eu namorava Célia, uma das filhas de meu saudoso sogro. Vendo a presença do Maurício nessa Varanda, perguntava a mim próprio por que um médico tisiologista de renome, fazia parte de uma conversa quase diária de intelectuais que discutiam filosofia, literatura, artes e política naquela residência? Ora, porque ele também entendia dos temas abordados naquela conversa, conforme fui observando, no decorrer de nossa longa, rica e prazerosa amizade. Acompanhei também sua participação nos diversos eventos culturais que aconteceram em Belém, pois, além de gostar desses eventos, era Membro da Comissão Paraense de Folclore e do Conselho Estadual de Cultura. Para citar apenas um exemplo de sua efetiva participação nos eventos artístico-culturais, em 1960 organizou juntamente com meu sogro, então Presidente e um dos fundadores da Aliança Francesa em Belém, e o então diretor dessa casa de cultura, professor Robert Reynard, a Exposição de “Pintura Francesa Contemporânea” em nossa cidade.

Essa sua paixão pela cultura, reconhecida pelas várias Medalhas e outras honrarias que recebeu nessa área do conhecimento humano, também era manifestada em artigos que publicava nos jornais de Belém, principalmente em A Província do Pará, dirigida por seus grandes amigos, os jornalistas Frederico Barata e Milton Trindade, além de discussão ao vivo nas reuniões que promovia em seu bangalô, na Travessa Rui Barbosa, com os protagonistas daqueles eventos, dentre os quais há destaque para os compositores Waldemar Henrique, Francisco Mignone e sua mulher, a concertista Maria Josefina Mignone, o soprano Maria Helena Cardoso e seu marido, o médico Eleison Cardoso, e o bailarino Augusto Rodrigues. Essas memoráveis reuniões eram sempre acompanhadas de deliciosas músicas erudita e popular tocadas ao piano, ora pela Dona Arlette, professora de Música do Núcleo de Artes da Universidade Federal do Pará, ora pelo filho Nelson e complementadas por excelentes iguarias servidas no jantar, sempre regadas por um bom vinho.

Uma outra faceta intelectual de nosso finado amigo, me foi alertada por meu fraterno cunhado Joaquim-Francisco Coelho, Professor Titular (“Nancy Clarke Chair”) da Universidade de Harvard, nos Estados Unidos, quando lhe comuniquei, por telefone, a morte do Maurício. Ele me disse: “Zeca, o Maurício tinha um grande conhecimento de política internacional, e nutria uma grande admiração por Winston Churchill, que ele considerava o maior estadista inglês do século XX”.

Um outro aspecto curioso da personalidade do Maurício, embora não sendo um católico praticante, era o do seu grande relacionamento com altas personalidades do Clero Paraense, como os Arcebispos Dom Alberto Gaudêncio Ramos e Dom Vicente Zico, e o hoje Monsenhor Nelson Soares. Sua grande amizade e admiração para com este sacerdote, fizeram-lhe homenageá-lo dando seu nome a um de seus filhos, assim como também sugeriu ao seu grande amigo Machado Coelho que o casamento de sua primeira filha, Célia, fosse realizado pelo então padre Nelson. Assim, eu tive o privilégio de ser casado por esse destacado e polêmico membro do Clero Paraense, em 6 de outubro de 1962, quando ele era pároco da Igreja de Santana.

Além de médico talentoso e intelectual brilhante, Maurício era um excelente amigo e um “joker”. Vi, várias vezes, ele socorrer aos amigos com relação a doenças deles próprios e de seus filhos. As famílias Machado Coelho e minha própria (Célia, Jô e Ádria) foram inúmeras vezes socorridas pela competente dedicação profissional e carinho humano em seu consultório ou em sua casa, em qualquer hora do dia ou da noite, sem nenhuma remuneração. Ainda está viva na memória de Célia, o dia 8 de maio de 1959, ocasião em que o Maurício socorreu sua mãe, Dona Celina, no momento do difícil trabalho de parto que antecedeu ao nascimento de Maria do Socorro, irmã caçula de minha mulher. Maurício conduziu-a à “Maternidade da Ordem Terceira”, em seu luxuoso carro e às pressas, a parturiente que apresentava um quadro de placenta prévia.

Por outro lado, são folclóricas as brincadeiras e as cenas de presdigitação e de imitação que o Maurício aprontava, quer em sua própria casa, quando festejava seu aniversário, no dia 31 de março (ele nasceu em 1919), na Varanda do professor e jornalista Machado Coelho, nas célebres reuniões aos sábados na casa do Bacharel em Direito, João Rodrigues Fernandes, nos apartamentos dos saudosos amigos, o professor e Bacharel em Direito, Irawaldyr Rocha e os médicos, José Gurjão Sampaio e Messildo Morato Luterbach, ou em qualquer situação que se oferecia para seu grande talento “brincalhão”.

A capacidade do Maurício de descontrair as pessoas, ele exercitou em qualquer ambiente, como, por exemplo, quando colaborou com seu amigo e colega de turma, o inesquecível médico Otávio Lobo, na montagem de um dos melhores laboratórios de Radiologia de Belém, quiçá do Brasil; quando participou das reuniões da Comissão Paraense de Folclore, dirigida por sua amiga, hoje também falecida, Maria Brígido; ou ainda mesmo nas reuniões do Conselho de Cultura, qualquer que fosse o seu Presidente, inclusive seu colega de profissão, o professor Clodoaldo Fernando Ribeiro Beckmann.

Das inúmeras cenas hilárias que presenciei e das quais, em algumas delas, fui “vítima”, destaco a do “grilo falante”. Uma noite, na Varanda do meu sogro, quando a conversa fluía descontraidamente, eis que de repente um “grilo” começa a cantar, importunando a fala do pessoal ali sentado. Um dos participantes da conversa, o saudoso Raymundo de Souza Moura, vira-se para o meu sogro, e diz: “Machado, agora tua casa está cheia de grilos”? Meu sogro então chamou seu filho Ronaldo para tentar matar o importuno bicho. Depois de várias tentativas frustradas do Ronaldo para “finar” o maldito grilo, o Maurício, já com pena do rapaz e vendo a aflição de meu sogro, denuncia-se como responsável pelo falso grilo, dizendo: “Grilo, se gostas do Moura, canta três vezes”. “Morto” o “falso grilo”, a conversa voltou a fluir descontraidamente, depois de uma gostosa gargalhada do Maurício. Este tinha levado consigo um brinquedinho que grilava como se fosse um canto de verdade.

Nos últimos anos, quando a doença que o vitimou já dava seus primeiros sinais, suas dedicadas, filha Maria Alice e mulher Arlette, convidavam os amigos mais íntimos para ir conversar com ele na Rui Barbosa. Assim, o João Fernandes, o sociólogo e jornalista Lúcio Flávio Pinto, o historiador Vicente Salles, o escritor Clóvis Morais Rego, o médico Manoel Aires e eu sempre atendíamos a esse convite, que era acompanhado de salgadinhos e refrigerantes providenciados por Dona Arlette.

Creio ser oportuno destacar o extremo carinho e zelo com que todos os familiares do Maurício: a mulher Arlette e os filhos Maurício, Maria Alice Sicsú, Carlos Alberto e Nelson; o irmão Pedro; os sobrinhos Alice Cristina (“Kikika”), Cláudia, Cristina, Denise, Frederico, Maria Helena, Paulo, Sandra, Sérgio, Sílvia (“Pipa”) e Sônia; os netos Márcio, Patrícia e Rafael; os cunhados Adalberto, Alfredo, Alice, Altino e Nazaré; as noras Elza e Rosângela; o genro Guilherme, além da psicóloga Isaura Santos; dos médicos José Salame, Pedro Bisi, Salomão Kawage e Salvador Nahamias; dos demais membros do Corpo Clínico do INCOR, dos empregados de sua casa, Clarinda, Sônia e Seu Fernando cuidaram dos últimos dias de nosso grande amigo. Destaco, também, o indescritível conforto espiritual prestado por seu amigo Dom Zico, antes, durante e depois da morte de Maurício. Esse conforto estendeu-se a toda família.

Por fim, quero concluir essa singela homenagem prestada por seus familiares e amigos, por meu intermédio (o que agradeço), ao grande e saudoso Maurice, fazendo uma paráfrase de uma situação ocorrida com outro grande “joker”, o físico norte-americano, o Nobelista Richard Feynman. A escolha de um físico foi intencional, pois, com isso, homenageio, também, seu filho Nelson, atualmente professor de Física da Taravella High School, no Condado de Broward Coral Springs, na Flórida. Feynman estava em uma recepção quando fez uma brincadeira. A mulher de um físico, que estava presente no local, disse-lhe: “Are you joking Mr. Feynman?” (“Você está brincando, Senhor Feynman?”), Assim, creio eu, depois de presenciar uma das brincadeiras que, agora, o Maurício está fazendo, no céu, com São Pedro, um daqueles seus contemporâneos do Missouri State Sanatorium, pergunta-lhe: “Are you still joking Mr. Maurice?” (“Você ainda está brincando, Senhor Maurice?”).

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1. Artigo publicados nos jornais O Liberal no dia 23 de novembro de 2003, e no Diário do Pará nos dias 23 e 24 de novembro de 2003.

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