PROFESSORA MARIA AMÉLIA: O MEU PRIMEIRO CONTATO COM A FÍSICA ¹

PERFIS

PROFESSORA MARIA AMÉLIA: O MEU PRIMEIRO CONTATO COM A FÍSICA ¹

Quando fui aluno da Professora Maria Amélia Ferro de Souza, na disciplina Geografia Geral, no primeiro ano do Curso Ginasial do Colégio Estadual “Paes de Carvalho”, o famoso e querido CEPC, nos idos de 1947, nunca imaginei que, naquelas excelentes aulas sobre o Universo em que vivemos, estava tendo o primeiro contato com uma parte (Astronomia) da disciplina Física que, oito anos depois, começaria a ensinar no hoje extinto Colégio “Abraham Levy”, de propriedade da educadora Alice Antunes.

A maioria das aulas da professora Maria Amélia eram ministradas em uma sala especial do CEPC, conhecida como Sala de Geografia, pois havia na mesma uma série de mapas, pendurados nas paredes, além de um planisfério (mapa-mundi plano) de madeira, na forma de uma grande mesa. Essa sala era voltada para o pátio de recreio das alunas. É oportuno registrar que, naquela época, o CEPC (que era um Colégio misto) tinha pátios de recreio para os alunos e para as alunas, porém, incomunicáveis. O do alunos era muito maior, em forma de U, envolvendo a última ala do prédio. Uma das pernas menores desse U tinha uma porta de saída pela Rua João Diogo, defronte ao Quartel dos Bombeiros; em sua outra parte menor, ficava uma grande escada de madeira, que dava acesso ao segundo andar do prédio e na qual os calouros recebiam o trote dos veteranos. Na parte maior do U, os alunos tinham aulas de Educação Física, com o saudoso professor Virgínio Ferreira. Uma face dessa parte maior era separada, por um muro bem alto, do referido pátio das alunas.

Nessas aulas de Geografia Geral aprendi, pela primeira vez, que em priscas eras, o astrônomo e filósofo grego Filolau de Tarento (c.480 A.C. – ? ) acreditava na existência de um fogo central representando o centro de nosso Universo esférico. Muitos anos mais tarde, cerca de 40 anos, quando estava preparando a Crônica da Gravitação, aprendi que esse “fogo” era envolvido por dez esferas concêntricas correspondendo aos astros: Terra, Lua, Sol, Mercúrio, Vênus, Marte, Júpiter, Saturno, Antiterra (planeta sempre oculto para os terráqueos e situado do outro lado do Sol) e as estrelas. Aprendi, também, que esse “fogo”, sempre invisível, era conhecido como “fogo d’Hestia”, pois Hestia era a Deusa da lareira sagrada, nas casas e nos edifícios públicos.

Além de nos revelar que, durante muitos séculos perdurou o modelo geocêntrico do astrônomo grego Cláudio Ptolomeu (85-165) para a explicação de nosso sistema planetário, até ser substituído pelo modelo heliocêntrico do astrônomo polonês Nicolau Copérnico (1473-1543), a professora Maria Amélia nos ensinou uma coisa profundamente importante (naquela ocasião, decerto, creio, não tínhamos consciência dessa importância) relacionado com o conhecimento de nosso Universo, em particular, de nosso sistema planetário. Assim, em uma de suas aulas, nos mostrou que esse conhecimento era cumulativo ao afirmar que: – “Desde Filolau, o sistema planetário já aumentou de seis para nove planetas: Urano, em 1781; Netuno, em 1846; e Plutão, em 1930”. E este, concluiu, “foi descoberto há apenas 17 anos ”! Hoje, mais de cinqüenta depois daquela sábia observação, já foram descobertos 28 planetas orbitando em torno de outros sóis pertencentes a nossa e a outras Galáxias, de nosso longínquo, admirável e misterioso Universo. Por exemplo, em abril deste ano de 1999, o astrônomo R. Paul Butler descobriu três planetas girando em torno da estrela Upsilon Andromedae, sendo esta distante 40 anos-luz da Terra. Em dezembro de 1999, mais seis planetas foram descobertos fora do sistema solar, distando, respectivamente: 65, 83, 106, 108, 137 e 192 anos-luz de nosso planeta. (1 ano-luz vale, aproximadamente, 9,5 trilhões de quilômetros.)

Um outro aspecto interessante das aulas dessa grande mestra paraense ocorreu aquando do eclipse total do Sol ocorrido em 20 de maio de 1947, visível na Argentina, Paraguai, Brasil, África Central e Oceano Atlântico, por um período de 5 minutos e 12 segundos. Nas aulas que antecederam esse evento astronômico, a Professora Maria Amélia nos explicou o que era um eclipse (total ou parcial), quer solar (Lua, entre Terra e Sol), quer lunar (Terra, entre Sol e Lua), e nos indicou uma maneira de observá-lo. Como não se pode olhar diretamente para o Sol, sob o risco de sofrer uma lesão séria na retina [aliás, como aconteceu com o grande astrônomo e físico italiano Galileu Galilei (1764-1642)], ela indicou que deveríamos olhar o eclipse com um pedaço de vidro escurecido com a “fumaça” de uma lamparina. E, desse modo, observamos o eclipse, que ocorreu na manhã daquele dia 20, por volta das dez e meia e por poucos minutos.

Ao falar da lamparina, veio-me à lembrança um fato interessante e inusitado de nossa querida Belém, ocorrido na década de 1940. Como a Pará Electric (PE), empresa inglesa responsável, principalmente, pela iluminação e transporte urbano (bondes) de Belém, estava em final de concessão, essa empresa não se preocupou em fazer novos investimentos em suas usinas termo-elétricas geradoras de força e corrente elétricas, e, por isso, a luz que o belenense recebia em sua casa era bastante fraca, um “tição”, como dizíamos, e sempre faltava. Assim, àquela época, as casas de Belém tinham, sempre à mão, um dispositivo luminoso para prover essa constante falta de luz.

A compra desse dispositivo, como salientou meu amigo João Rodrigues Fernandes que, inclusive, foi regente de turmas suplementares da professora Maria Amélia, no CEPC, em 1943, caraterizava bem o status social do belenense. Assim, tínhamos: petromax (nome comercial) (utilizado pelo rico), candeeiro (usado pelo remediado) e lamparina (para uso do pobre). Existia, também, o carbureto, conforme me lembrou meu cunhado, Joaquim-Francisco Mártires Coelho, para a classe intermediária (rico-remediado). Registre-se que esse composto químico era bastante usado nas oficinas que trabalhavam (e ainda trabalham) com solda de metais, pois, ao ser colocado em água, desprende o gás acetileno que, em contato com o oxigênio do ar, se torna inflamável. (Meu amigo Alfredo José Salame me informou que o carbureto também foi usado para iluminar os faróis dos carros, antes da bateria elétrica.)

Creio ser interessante, na altura desse depoimento-memória, fazer um pequeno comentário sobre os três dispositivos luminosos referidos acima. Eles são, basicamente, do tipo lampião a óleo, que funciona pela queima de uma mecha (pavio), normalmente feita de material fibroso para permitir a ascensão (por capilaridade) do combustível usado. Contudo, a intensidade da luz emanada dessa queima depende de inovações tecnológicas agregadas a esse velho lampião. Assim, quando a mecha é substituída por uma camisa incandescente produzida por petróleo vaporizado à pressão, protegida por uma manga de vidro, temos o petromax ou “candeeiro Kitson”, inventado em 1885. Por sua vez, quando a mecha é apenas protegida por uma manga de vidro, temos o candeeiro; se não há proteção, resulta a lamparina. Nos três casos, há desprendimento de fuligem (basicamente, composta de carbono) decorrente da combustão incompleta, sendo esse desprendimento mais acentuado no caso da lamparina. E é justamente essa fuligem que constitui a famosa “fumaça” que utilizei para escurecer o vidro para ver o eclipse de 1947. (Agradeço ao meu amigo Francisco Pereira Assunção, as noções de Química acima utilizadas.)

Um outro fato que me liga à professora Maria Amélia resulta de minha primeira e única reprovação que tive durante os sete anos (Ginásio: 4; Científico: 3) em que estudei no CEPC. Foi justamente, em 1947, na disciplina dessa querida educadora que ora estamos homenageando. Fiquei para a então Segunda Época, ou seja, uma segunda oportunidade que o estudante tinha de conseguir a aprovação (média 4, num máximo de 10) em uma ou, no máximo, duas das disciplinas que o mesmo cursava em um determinado ano. Esse Exame ocorria sempre em fevereiro do ano subseqüente ao da reprovação.

Hoje, recordando essa reprovação, que resultou de minha inteira responsabilidade, pois não estudei o bastante para conseguir a aprovação, lembro-me de dois aspectos marcantes de minha vida. O primeiro deles diz respeito a minha vocação e vontade de ser engenheiro já evidenciada naquela época. A vocação decorria do fato de eu gostar de Matemática, pois além de estudar com prazer essa disciplina, dava aulas particulares para filhos(as) de nossos vizinhos da Travessa São Pedro 421 (hoje, 851), onde morava. (Naquela época, quem gostava de Matemática deveria seguir a carreira de engenharia; quem gostava de Português, a de advocacia; e quem gostava de Ciências Naturais, deveria ser médico.) A vontade de ser engenheiro evidenciava-se na minha mania de estar sempre a construir alguma coisa no quintal de casa. Assim, ao mesmo tempo em que estudava, por exemplo, para fazer a Segunda Época com a professora Maria Amélia, eu preparava a garagem e o “dique” para guardar e lavar os carrinhos de madeira que eu próprio construíra.

O segundo aspecto marcante de minha vida, emergido agora dessas recordações, diz respeito ao tipo “lorentziano” que sempre fui. Explico-me. Olhando as médias das notas que tirei no CEPC, nas diversas disciplinas que cursei no Ginásio (1947-1950) e no Científico (1951-1953) verifiquei que foram, respectivamente, 6,55 e 7,61, para um máximo de 10. Ora, como a curva de Lorentz é uma curva parecida com a curva de Gauss (a curva da média, em torno de 5, no caso dessas notas), com um “calombo” à direita do ponto médio, as notas indicadas acima explicam a minha “lorentzidade”, que, aliás, sempre me acompanhou nos cursos de terceiro e quarto graus que fiz posteriormente.

Ao finalizar esse depoimento sobre a veneranda mestra e ex-diretora de nosso inesquecível CEPC, quero aproveitar a oportunidade para agradecer ao meu amigo, Professor Ubiratan Gonçalves de Sant’Anna, por haver me chamado a atenção para o fato de que a professora Maria Amélia havia defendido Tese para a Cátedra de Geografia Geral, nesse Colégio e, também, por haver feito os primeiros contatos, telefônico e por carta, para que a mesma me enviasse um exemplar da Tese em questão. Junto com a mesma, tive o grato prazer de receber uma das mais belas cartas que recebi em toda a minha vida. Assim, para dividir com os leitores esse imenso prazer, segue, por sugestão de meu cunhado Joaquim-Francisco, a carta em seu total conteúdo: gráfico e emotivo. Esta homenagem não poderia se concluir com melhor documento.

Belém, 3 de janeiro de 2000

Estimada Professora Maria Amélia

O Cartão de Natal que a senhora me enviou deixou-me bastante sensibilizado e, ao mesmo tempo, muito lisonjeado, pelas suas amáveis e bondosas palavras sobre o “jovenzinho de outrora” que a senhora teve oportunidade de ensinar e, hoje, professor da Universidade Federal do Pará. Muito obrigado, e que DEUS, na sua infinita bondade, lhe dê muitos anos de vida e a mantenha íntegra e inteligente como sempre foi.
Aproveito a oportunidade desta carta para dar notícias da publicação de sua excelente Tese, na opinião do Professor Roberto Monteiro, autor da apresentação da referida Tese. Eu havia previsto que a Tese estaria pronta para mandar para a Gráfica até o final de 1999. Contudo, os Professores Clóvis Moraes Rego e Maria Annunciada Chaves, que fazem questão de dar depoimentos sobre a senhora, me pediram que eu adiasse aquela data de entrega para 15 de janeiro corrente. Assim, resolvi esperar esses depoimentos.
Por fim, gostaria de saber da senhora se a apresentação (anexa) feita pelo Professor Roberto Monteiro está digna de fazer parte dessa merecida homenagem que vinte e três grandes admiradores e diletos amigos seus estão preparando para a senhora. Portanto, caso a estimada mestra e amiga queira fazer alguma alteração nessa apresentação, fique inteiramente à vontade em fazê-la pois o Professor Roberto, que não teve a honra e o privilégio de ser aluno, conforme ele próprio me falou, está pronto a alterar a apresentação para que a homenagem à senhora seja completa.
Receba, mais uma vez, votos de muitas felicidades neste novo ano que se inicia, do sempre aluno e admirador.

Belém, 18 de janeiro de 2000

Estimada Professora Maria Amélia

Finalmente, até o final deste mês, sua Tese (Memórias 4) estará indo para a Gráfica para ser editada.
Com relação ao texto final de Memórias 4, os Organizadores da mesma resolveram modificar o formato das outras três, não incluindo o Comentário da Tese, uma vez que, em alguns depoimentos prestados por amigos e admiradores da senhora, incluem comentários, lúcidos e pertinentes, sobre o conteúdo de seu trabalho e, portanto, completam as Memórias 4.
Desse modo, logo que a Gráfica entregue os exemplares, entraremos em contato com a veneranda Mestra para marcarmos a data do lançamento que contará com a sua presença, caso seja seu desejo.
Receba votos de muitas felicidades de seu sempre aluno e admirador.
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1. Artigo publicado na Tese de Maria Amélia Ferro de Souza, O Papel do Mar na Economia do Mundo, Memórias 4 (FUNTEC/UFPA, 2000).

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