RUY DA SILVEIRA BRITTO ¹

PERFIS

RUY DA SILVEIRA BRITTO ¹

Quando fui aluno do professor RUY DA SILVEIRA BRITTO, na antiga Escola de Engenharia do Pará (EEP) (na Travessa Campos Sales com a Rua Senador Manoel Barata), na cadeira denominada Resistência dos Materiais e Grafostática, em 1956, ele já era considerado o maior conhecedor de Matemática, no norte do Brasil, bem como um engenheiro de renome, pois dirigia um dos primeiros Escritórios de Engenharia que construía residências em Belém do Pará. No ano seguinte, em 1957, voltei a ser seu aluno na Cadeira intitulada Hidráulica Teórica e Aplicada, após uma briga que nossa turma teve com o antigo titular dessa Cadeira, que resultou no seu afastamento e conseqüente substituição pelo professor Ruy Britto, como era conhecido nos Colégios Secundários em que ensinou. É oportuno registrar que quando a situação da Cadeira foi regularizada ela passou-a ao professor Alírio César de Oliveira, que começou então a regê-la.

A fama do professor Ruy Britto como matemático brilhante foi adquirida por haver defendido, em 1941, a Cátedra de Matemática no Colégio Estadual “Paes de Carvalho” (CEPC), com a Tese sobre a Teoria dos Conjuntos. Esse assunto matemático era bastante atualizado, pois havia sido criado pelo matemático germano-russo George Cantor (1845-1918), a partir de 1874, e cujo desenvolvimento maior aconteceu no começo do século XX. Os amigos do professor Ruy contavam que um de seus professores, o advogado Abel Martins da Silva, certo dia chegou com ele e disse-lhe: Ruy, não tenho mais nada a lhe ensinar, você já sabe mais do que eu.

Os primeiros contactos de nossa turma de Engenharia Civil com o professor Ruy Britto não foram fáceis, pois, como faltara às primeiras aulas de Resistência dos Materiais, fomos à casa dele (na Avenida Gentil Bittencourt, entre a Travessa Quintino Bocaiúva e a Avenida Generalíssimo Deodoro), para saber se estaria interessado em nos ensinar. Como entendeu que a nossa turma estava mesmo disposta a aprender aquela disciplina, que era básica do Curso de Engenharia Civil, ministrou, como era de se esperar, um excelente curso. Para isso, usou o livro intitulado Leçons sur la Resistence des Materiaux (Eyrolles, Paris, 1948), do engenheiro francês Edmond Dreyfuss. Aliás, o professor Ruy Britto costumava dizer para seus alunos que sua cultura técnico-científica era decalcada em livros franceses e italianos, os quais, mais tarde, quando nos tornamos grandes amigos, tive oportunidade de manipular, em sua nova residência, na Avenida Governador José Malcher, ao lado da Ação Católica.

Para a nossa turma e, principalmente, para mim, as aulas de Resistência dos Materiais foram de extrema importância, pois, graças a elas, tornei-me Calculista de Estruturas de Concreto Armado. Por exemplo, já em 1957, quartoanista de Engenharia Civil, fiz o cálculo estrutural do Edifício “Cimóvel” (hoje, 2005, Restaurante “Sinhá”), localizado na Rua Senador Manoel Barata (entre as Travessas Padre Eutíquio e Sete de Setembro), que foi construído pelo saudoso amigo Laurindo Antônio Gonçalves de Amorim, meu colega de turma, construtor de bastante prestígio em Belém, pois já havia construído o Edifício “Importadora de Ferragens”, na Avenida Presidente Vargas, entre as Ruas Santo Antônio e Treze de Maio. Lembro-me de que para fazer aquele cálculo usei o que aprendi nas aulas de Resistência, acrescido dos conhecimentos das aulas da Cadeira Estabilidade das Construções, que o professor João Lima Paes ministrava à nossa turma, naquele mesmo ano de 1957, e mais os ensinamentos práticos sobre Estruturas de Concreto Armado que meus amigos, os engenheiros civis Isaac Barcessat e Luiz Gonzaga Baganha, meus colegas do então Serviço Municipal de Estradas de Rodagem, onde trabalhávamos, me haviam transmitido.

Depois de ser novamente aluno do mestre Ruy Britto, como eu o chamava, por pouco mais de um mês, ainda em 1957, na Cadeira Hidráulica Teórica e Aplicada, conforme registrei acima, voltei a ser seu aluno, agora em circunstâncias bastante especiais. Com efeito, objetivando aprimorar mais ainda os conhecimentos de Matemática, por volta de 1960, o professor Ruy foi fazer pós-graduação no Instituto de Matemática Pura e Aplicada (IMPA), no Rio de Janeiro. Em sua volta a Belém, no começo de 1962, decidiu formar uma “Escola de Matemáticos”. Com esse objetivo, reuniu alguns professores de Matemática: Leão Samuel Benchimol, Manoel Leite Carneiro, Manoel Viégas Campbell Moutinho e Rui dos Santos Barbosa e eu, professor de Física, que ensinávamos no então Núcleo de Física e Matemática (NFM) da Universidade do Pará, que funcionava no Edifício “Vanja” (na Travessa Benjamin Constant, entre as Avenidas Nazaré e Governador José Malcher). Registre-se que, mais tarde, calculei a estrutura em concreto armado do novo Edifício “Vanja”, ao lado do antigo.

Assim, para formar aquela “Escola”, o professor Ruy iniciou ministrando um Curso de Espaços Vetoriais, usando o livro Finite-Dimensional Vector Spaces, de Paul R. Halmos, editado pela D. Van Nostrand Company, Inc., 1958. Como esse Curso não teve aceitação oficial, provavelmente por ciumadas de alguns professores-dirigentes universitários, no início, tivemos algumas dificuldades para podermos assistir às aulas. Como essas eram ministradas nos finais de semana encontramos, algumas vezes, as salas fechadas, manipuladas por uma “mão invisível”. No ano seguinte, em 1963, o professor Ruy nos ministrou um Curso de Teoria da Medida. Esses Cursos foram importantes para que eu iniciasse minha pós-graduação em Física, em 1965, na Universidade de Brasília (UnB).

A preocupação do professor Ruy Britto em formar matemáticos ia além do mero ensino de disciplinas fundamentais, como as que nos ministrou. Ele se preocupava, também, com que tivéssemos acesso a livros que não se encontravam nas livrarias de Belém. Assim, toda vez que ia ao Rio de Janeiro, ele encomendava livros na Livraria Castelo Ltda. (situada na Avenida Erasmo Braga 227, segundo andar). Por exemplo, em outubro de 1962, adquiri dessa livraria o livro Mechanics, de Keith R. Symon, editado pela Addison-Wesley Publishing Company, Inc., em 1961.

É oportuno registrar que, em Belém, nas décadas de 1950 e 1960, existiam livrarias nas quais podíamos comprar livros técnicos e científicos em línguas estrangeiras, como a Livraria “Martins”, dos irmãos Martins (Travessa Campos Sales, entre as Ruas Treze de Maio e João Alfredo), a livraria do Laurindo Garcia (Rua Oliveira Belo, entre a Avenida Generalíssimo Deodoro e a Travessa 14 de Março) e a Livraria “Don Quixote”, do escritor Haroldo Maranhão (localizada na Galeria do Edifício “Palácio do Rádio”). Essas livrarias permitiam que estudantes e profissionais comprassem seus livros em módicas prestações mensais sendo que, às vezes, algumas delas ficavam “penduradas” por inadimplência, como diríamos hoje, de alguns de seus compradores, inclusive eu próprio (na “Martins”), enquanto estudante.

Na continuação deste depoimento sobre o professor Ruy da Silveira Britto, quero registrar alguns fatos relativos ao seu tão conhecido “desligamento”, conforme o relato de alguns de seus estudantes. Uma vez, no Colégio Moderno (CM), ele começou uma aula de Matemática para o então Curso Secundário, desenhando no quadro negro um paralelepípedo de cujas faces saíam vários vetores. Quando os alunos começaram a ficar perplexos, pois nunca tinham visto esse “paliteiro”, o Ruy virou-se para eles e disse-lhes: Desculpem-me, pensava que estava na Escola de Engenharia ministrando uma aula de Resistência dos Materiais. Esse “paliteiro” era o conhecido paralelepípedo das tensões de um corpo sujeito a forças de tração ou compressão, que seus alunos universitários daquela disciplina tão bem conheciam.

De outra feita, no CEPC, entrou em uma sala de aula, logo depois do toque de chamada. Dirigiu-se diretamente ao quadro-negro e começou a escrever uma série de fórmulas. Apagava, continuava a escrever, voltava a apagar e prosseguia escrever, num processo contínuo como se seus alunos, em completo silêncio, estivessem acompanhando a “aula”. Quando a campainha soou o término das aulas que aconteciam naquele momento no CEPC, saiu de sala, mudo como entrara.

O “desligamento” do professor Ruy não acontecia somente em sala de aula. Por exemplo, por duas vezes fui testemunha desse ato aparentemente desprendido do mestre Ruy. Nas décadas de 1940, 1950 e 1960, o meu sogro, professor Machado Coelho, todas as noites tinha o hábito de receber seus amigos (não todos ao mesmo tempo) em sua residência, na Praça da República (quase próximo da Avenida Nazaré), onde também eu morava. Além do matemático Ruy, freqüentavam essa casa os seguintes amigos: os médicos Adriano Guimarães, Arnóbio Melo, Eleison Cardoso, José Gurjão Sampaio, Maurício Coelho de Souza e Ritacínio Pereira; os advogados Cléo Bernardo Braga, Edgar Chermont, Edgar Vianna, João Rodrigues Fernandes, Manoel Lobato, Raimundo Moura, Rui Coutinho e Sílvio Braga; os jornalistas Carlos Mendonça, José Sampaio de Campo Ribeiro, Edgar Proença, Edyr Proença, Frederico Barata, Heriberto Pio, João Malato, Regina Pesce e Santana Marques; os poetas Mário Faustino, Max Martins, Paulo Plínio Abreu e Rui Barata; os professores Américo Guerra, Edgar Olinto Contente, Francisco Paulo do Nascimento Mendes, Irawaldyr Rocha, Max Boudin, Orlando Costa, Simão Bitar e Walkyria Melo; os escritores Adalcinda Camarão, Álvaro Córdova, Artur Reis, Benedito Nunes, Celso Cunha, Dalcídio Jurandir, Eidorfe Moreira, Floriano Jaime, Gilberto Freire, Haroldo Maranhão, Jocelin Brasil, Josué Montelo, Jurandir Bezerra, Leandro Tocantins, Luís Maximino de Miranda Correa, Philippe Greffet, Osvaldo Orico e Zora Seljan; os antropólogos Darcy Ribeiro, Eduardo Galvão, Napoleão Figueiredo, Nunes Pereira, Peter Paul Hilbert, Roberto Galvão e Walter Egler; os pintores Armando Baloni, César Calvo, Garibaldi Brazil, Leônidas Monte, Paolo Ricci  e Raul Deveza; o ceramista Álvaro Amorim; o maestro Waldemar Henrique; o cineasta Libero Luxardo; o fotógrafo Marcel Gautherot; o bailarino Augusto Rodrigues; o arquiteto Donato Melo Júnior; e o despachante Luzio Lima. Certa noite, o professor Ruy Britto visitou-nos naquela residência e depois de conversar com alguns amigos do meu sogro, pediu-me que o levasse ao CEPC, de onde era Diretor. Peguei meu “jeep” Wyllis, e fui deixá-lo. Cerca de meia hora depois, já em casa, recebi um telefonema dele pedindo que fosse buscá-lo naquele Colégio, pois ele esquecera, na porta de casa, o Citroen de sua cunhada Maria que ele próprio trouxera dirigindo.

Numa outra noite, o professor Ruy entrou e falou com algumas pessoas que estavam em nossa casa, esquecendo de cumprimentar o Raimundo Moura. Este, junto ao meu sogro, comentou: Machado, será que o Ruy tem alguma coisa contra mim, pois falou com todos e menos comigo. Meu sogro respondeu: Não é nada disso Moura, deve ser algum problema de Matemática que o está importunando. Logo depois, o Ruy virou-se para o Moura e disse: Oi, Moura, onde estavas que não te vi entrar?.

Na conclusão deste depoimento sobre o mestre Ruy, quero registrar dois aspectos interessantes de sua personalidade como professor-pesquisador de Matemática. O primeiro deles refere-se a sua consciência sobre a interdisciplinaridade dessa disciplina. Em 1959, a Aliança Francesa realizou um Curso sobre Pintura Contemporânea Francesa e uma das palestras desse Curso foi proferida pelo professor Ruy Britto, abordando o tema Matemática e Pintura. Depois de falar da importância dos princípios matemáticos da perspectiva, usados pelo pintor italiano Piero Della Francesca (c.1410-1492), concluiu su exposição dizendo que a Topologia talvez tenha influenciado a Pintura Abstrata. Para ilustrar essa afirmação, observou que entes topológicos, como a fita de Möbius e a garrafa de Klein, poderiam ser vistos como “pinturas abstratas”. [Esses entes matemáticos foram propostos, respectivamente, pelos matemáticos alemães Augustus Ferdinand Möbius (1790-1868), em 1865, e Christian Felix Klein (1849-1925), em 1882.]

O segundo refere-se a sua capacidade de reconhecer talentos. Por exemplo, o mestre Ruy sempre me dizia quando uma pessoa não apresentava talento para o estudo da Matemática: Bassalo, o fulano entrou na Matemática, mas a Matemática não entrou nele. Em uma outra ocasião, quando estávamos conversando, em casa, sobre o estudo de nosso grupo (Manoel Leite, Moutinho, Rui Barbosa, Benchimol e eu próprio) fazia com ele sobre Álgebra Linear – a janela para desfrutar a Matemática Contemporânea, segundo sua opinião -, ele me disse: Bassalo, meu amigo, não se zangue comigo, mas a melhor “cabeça” de vocês para a Matemática é a do Leite. Este era, em linhas gerais, o professor de Matemática e Engenheiro Civil Ruy da Silveira Britto, que estamos homenageando neste livro.

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1. Trabalho publicado na Tese de Ruy da Silveira Britto, Conjuntos Lineares: Sucessão (FUNTEC/UFPA, 1998).

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