AS EMPREITEIRAS E A CORRUPTO-GEOMETRIA

ENGENHARIA: CIVIL E RODOVIÁRIA

AS EMPREITEIRAS E A CORRUPTO-GEOMETRIA

Vendo, lendo e ouvindo os meios de comunicação da mídia brasileira sobre a CPI do Orçamento, na qual estão envolvidos políticos, empreiteiras e o Executivo brasileiros, numa trama de corrupção, lembrei-me de meu tempo de engenheiro civil do extinto Departamento Municipal de Estradas de Rodagem de Belém (DMER/Bl), ocasião em que tive oportunidade de ver a relação das empreiteiras com o Executivo Belenense, quer como espectador, quer como fiscal, juntamente com os meus colegas, os engenheiros civis José Augusto Soares Affonso e Lindolfo Campos Soares (estimados amigos e irmãos de sangue), de algumas empresas da área de construção rodoviária.

A Geometria é a parte da Matemática que trata, basicamente, do cálculo de comprimentos, áreas e volumes, que são os elementos fundamentais do orçamento de qualquer obra de engenharia. Ela é muito antiga, basta dizer que os egípcios, cerca de 4.000 anos antes de Cristo, se utilizaram dela para calcular a área das partes férteis do Rio Nilo, bem como para construir as famosas pirâmides, que são sólidos geométricos. Ela foi sistematizada por Euclides, um matemático grego que viveu 300 anos antes de Cristo. Essa sistematização é composta de postulados e proposições, sendo que o quinto (5o.) postulado (Por um ponto fora de uma reta só se pode traçar uma e somente uma paralela à mesma) ficou extremamente famoso, já que ficou sendo uma verdade absoluta até o século passado, quando foi observado que esse postulado poderia ter dois outros enunciados.

Com efeito, em 1826, o matemático húngaro Janos Bólyai e, independentemente, em 1832, o matemático russo Nikolay Lobachevski, descobriram que por um ponto fora de uma reta se pode traçar uma infinidade de paralelas à mesma, postulado esse que caracteriza a chamada geometria hiperbólica, cujo exemplo mais simples é o formato da sela de cavalo. Por sua vez, em 1851, o matemático alemão Georg Riemann apresentou uma segunda alternativa para aquele famoso postulado da geometria euclidiana, qual seja, a de que por um por um ponto fora de uma reta não se pode traçar nenhuma paralela à mesma, criando assim, a geometria esférica, cujo principal exemplo é a própria esfera. Por fim, em 1908, o matemático alemão Hermann Minkowski observou que a geometria da Relatividade Restrita, formulada pelo físico alemão e Nobelista Albert Einstein, em 1905, era uma geometria pseudo-euclidiana. Vê-se, portanto, que existem várias geometrias, hoje denominadas genericamente de geometrias riemannianas.

Apesar da diversidade de geometrias, os empreiteiros brasileiros (ou mundiais?) criaram sua própria geometria (que, agora, estamos denominando corrupto-geometria), com o objetivo de superfaturar as obras por eles empreitadas. Antes de dar exemplos desse tipo de “geometria”, vivenciados por nós, é necessário fazermos uma observação. Como a criação desse tipo de “geometria”, na grande maioria dos casos, não foi dolosa, e sim culposa, e devido a razões que analisaremos mais adiante, vamos representar essas empreiteiras apenas por uma notação alfa-numérica. Feita essa observação, vamos aos exemplos da corrupto-geometria.

Quando o Movimento Militar de 1964 se estabeleceu no Brasil, houve uma tentativa de propagar no país uma onda de moralidade, por intermédio das Comissões de Investigação Sumária (CIS), no âmbito civil, e dos Inquéritos Policial-Militar (IPM), no âmbito militar, pelos quais foram inquiridos possíveis corruptos e/ou subversivos. Essa onda, infelizmente, transformou-se numa “bolha de gás sulfídrico”, pois apenas os subversivos foram presos, alguns torturados e/ou mortos, enquanto os corruptos permaneceram impunes, propagando uma imensa onda de corrupção ao longo dos anos, que agora está tentando engolfar a todos nós, caso essa CPI do Orçamento não dê nenhum resultado.

Aliás, é oportuno registrar um fato curioso relativo à CIS do Pará. Por intermédio de meu amigo-irmão Irawaldyr Rocha, fui convidado pelo Presidente dessa CIS a pertencer à mesma. No entanto, como ela só queria examinar as atividades do Prefeito de então e não, também, às dos anteriores, me recusei a dela participar. O Presidente, no entanto, não aceitou essa minha ponderação e exigiu a minha convocação, impondo interesses cívicos-superiores. Então, aleguei que estava em crise de depressão. Quando o Irawaldyr transmitiu a alegação ao Presidente, este fez o seguinte comentário: Interessante, eu não sabia que o genro do Professor Machado Coelho era doido. Coitado de meu amigo Machado Coelho, além de ter de sustentar a sua grande prole, tem ainda de sustentar o genro e o neto. Na ocasião, Célia e eu tínhamos apenas um filho, o José Maria (Jô), nascido em 1963, já que a Ádria só nasceu em 1967.

Depois desse intróito, vejamos os exemplos da corrupto-geometria. Quando uma parte da CIS/PA se instalou no DMER, fui chamado (como trabalho de rotina) para verificar um serviço de aterro em uma estrada, realizado pela empreiteira E1. Depois de ir ao local onde foi realizado o aterro, verifiquei que o recebido não correspondia ao executado. Então, examinei as planilhas de cálculo, onde encontrei um primeiro exemplo dessa geometria suja. Basicamente, a quantidade de um aterro é calculada pelo volume de um prisma de base trapezoidal, que vale o produto de sua altura pela área trapezoidal. Por sua vez, um trapézio é uma figura plana de quatro lados, sendo dois paralelos, de valores desiguais, chamados de base maior e base menor, e dois lados inclinados que, no caso dos aterros, são iguais. Pois bem, a área de um trapézio é obtida somando-se as duas bases e multiplicando-se pela metade da menor distância entre elas, denominada de altura. Ao examinar a planilha de cálculo, observei que a área era calculada usando-se a metade da diagonal (reta que une dois vértices não consecutivos), que sempre é maior do que a altura. Para que o leitor tenha uma idéia desse acréscimo, exemplifiquemos. Um trapézio que tenha a base menor de dois (2) metros, a base maior de quatro (4) metros e uma altura de um (1) metro, a diagonal vale aproximadamente 3,2 metros. Numa estrada de milhares de metros, o leitor poderá avaliar o superfaturamento.

Dois outros exemplos dessa perniciosa geometria ocorreram quando eu, Lindolfo e Affonso fiscalizamos obras envolvendo a construção de sarjetas, num caso, e muro de arrimo, no outro. No caso da sarjeta, a deformação da geometria ocorreu da seguinte maneira. A empreiteira E2 havia apresentado uma área muito alta para o cálculo da forma (caixa de madeira) de cada metro cúbico (m3) para a sarjeta de uma determinada estrada-rua. Quando fomos ver a composição dessa área na planilha de cálculo, verificamos logo a razão daquela discrepância. Os autores do cálculo da empreiteira haviam considerado que um cubo tinha dez (10) faces, em vez de seis (6), como os egípcios já haviam considerado na construção de suas pirâmides. Além do acréscimo absurdo, existia um outro, qual seja, o de que para o caso em questão – forma da sarjeta – só devem ser consideradas duas (2) faces, correspondentes às laterais, já que o serviço é feito por metro corrido, ao ar livre e em chão batido. Desse modo, para cada dois metros quadrados (2m2) reais, eram computados dez (10).

No caso do muro de arrimo, ocorreu situação semelhante. O muro, cuja construção estávamos fiscalizando, possuía a forma de um prisma escalonado, já que tinha uma base larga e, na direção de sua altura, a largura ia diminuindo, até o seu topo. A secção transversal do muro era, portanto, a de um polígono, que poderia ser decomposto na soma de vários retângulos, cada um menor do que o antecedente, contados a partir do retângulo maior, considerado como base. O cálculo apresentado pela empreiteira E3 para a área desse polígono foi como se o perfil do muro fosse de um único retângulo, formado pela base do retângulo maior e pela altura total do muro. O leitor pode ver que, dependendo da altura do muro, a diferença é muito significativa. Por exemplo, se o muro tiver uma altura de dois (2) metros, como também dois (2) metros de base, e se para cada meio (1/2) metro dessa altura, a base reduz também de meio (1/2) metro, no final teremos um muro cujo perfil é em forma de uma escada de quatro (4) degraus, sendo cada degrau com meio (1/2) metro de altura e meio (1/2) metro de piso. Para esse perfil, sua área é de dez (10) quadrados de meio (1/2) metro de lado, o que dá, portanto, uma área dois e meio metros quadrados (2,5m2). Na “geometria” da empreiteira, ele teria quatro metros quadrados (4m2), com um acréscimo de sessenta (60) por cento.

Levando-se em conta que as obras rodoviárias envolviam milhares de metros, conforme já mencionamos, esses exemplos mostram ao leitor como era feito o superfaturamento pelas empreiteiras há cerca de trinta (30) anos atrás. Hoje, não sei se continua esse mesmo processo, ou se há mais sofisticações. No entanto, conforme dissemos acima, esse tipo de faturamento é um crime culposo, e não doloso. E por que culposo? Pelo seguinte. Quando criticávamos os empreiteiros sobre sua geometria facciosa, às vezes com uma dosagem de ironia, quando dizíamos que haviam descoberto “novos” teoremas em Geometria, eles se justificavam dizendo que agiam dessa maneira, por duas razões básicas: a demora no recebimento das faturas; e a famosa propina para satisfazer o apetite ambicioso de políticos e/ou de funcionários públicos. Contudo, esse crime é facilmente sanável, pois ele é apenas cultural, ou seja, pratica-se o mesmo por ser norma aceita tacitamente pela sociedade. Assim, como diz meu grande amigo, o engenheiro mecânico Luiz Otávio Brito de Souza Ferreira, se as pessoas forem ensinadas desde criança a não praticá-lo, certamente ele não ocorrerá.

Para concluirmos este artigo, deveremos responder a duas perguntas que certamente o leitor tem em sua cabeça. Se na época examinada neste trabalho, existiram serviços dolosos; e se, apesar de encontrarmos essa corrupto-geometria, os empreiteiros receberam os valores propostos? Para a primeira pergunta, a resposta é sim. Porém, como esse delito decorre de um crime premeditado, está fora do escopo desse artigo, e teria de ser resolvido pela polícia. Para a segunda, a resposta é não. No entanto, é preciso dar uma explicação. Em meu mais de dez (10) anos de análise, com meu estimado amigo e competente médico-holístico José Paulo de Oliveira Filho, aprendi que o HOMEM (no sentido antropológico) é uma “máquina de desejos”, cujo talento para realizá-los é sempre menor do que si próprio. Contudo, existem certos HOMENS de maior coragem do que outros, e que podem, por isso mesmo, ser mais ousados.

Minha coragem, por exemplo, não é tão grande assim, e ao descobrir isso, afirmei certa vez ao jornalista Luiz Paulo (“Zing”) Freitas: Na minha vida, não fui honesto por virtude, e sim por falta de muita coragem para ser ladrão. O leitor há de convir que é preciso ter muita coragem para afirmar que sua fortuna (se a tiver conseguido de maneira ilícita), foi obtida por haver corrompido uma lei da probabilidade ou mesmo uma lei da Física, como à da gravidade ou à da impenetrabilidade de corpos no mesmo lugar do espaço.

Addendo (21/08/2014): Agradeço ao meu amigo, o matemático João Batista do Nascimento da Faculdade de Matemática da Universidade Federal do Pará, por chamar a minha atenção sobre o erro que cometi ao trocar o postulado das paralelas nas Geometrias Hiperbólica e Esférica.

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1. Artigo publicado no jornal A Província do Pará, nos dias 5 e 6 de dezembro de 1993 e, de forma adaptada, no Jornal da Ciência Hoje, em 3 de dezembro de 1993.