CASSAÇÃO BRANCA E CASSAÇÃO PATRULHADA

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CASSAÇÃO BRANCA E CASSAÇÃO PATRULHADA ¹

O objetivo deste artigo é o de relatar a odisséia por um professor de uma Universidade da periferia do Terceiro Mundo, na tentativa de aprimorar sua formação científica no exterior, para melhor servir à comunidade universitária da qual pertence.

Minha primeira tentativa de ir ao exterior ocorreu em 1972 quando, a convite do Prof. P. Barchewitz, do Laboratoire d’Infrarouge, Faculté de Siences, Orsay, Paris, pretendia desenvolver naquele laboratório francês um trabalho de pesquisa que serviria de subsídio para a minha tese de mestrado que estava desenvolvendo com o Dr. Mauro Sérgio Dorsa Cattani, professor da Universidade de São Paulo (USP). Este, naquele ocasião, se encontrava em Orsay, desenvolvendo pesquisas na área de Formas de Linhas Espectrais, e assunto de minha tese. Infelizmente, a solicitação que fiz ao então Conselho Nacional de Pesquisas (CNPq) sofreu os conhecidos tramites burocientistocráticos e a mesma só foi concedida na época em que não poderia mais viajar para a França, de vez que meu orientador já não se encontrava mais neste país. Em vista disso, o professor Cattani e eu decidimos que seria melhor concluir o mestrado e também o doutorado no Brasil, para depois fazer estudos de pós-doutorado na França. E isso foi feito, já que em 1973 e em 1975, respectivamente, recebi os títulos de Mestre e de Doutor em Física pela USP, ambos os títulos sob a orientação desse mesmo professor.

Terminado o doutorado no Brasil, tentei fazer a Segunda viagem ao exterior para realizar em 1975, e ainda em Orsay, um estágio de pós-doutoramento. Desta vez a bolsa de estudos solicitada ao CNPq foi-me concedida em tempo hábil, no entanto, fui vítima de uma cassação branca por parte do Serviço Nacional de Informações (SNI), já que não me foi concedida a licença por parte do Ministério da Educação (MEC) para viajar ao exterior. Nunca soube a razão dessa cassação. Parece que um dos argumentos utilizados pelo SNI (informação essa que obtive extra-oficialmente), foi o fato de eu haver morado no Conjunto Residencial da Universidade de São Paulo (CRUSP), na ocasião em que esse conjunto foi invadido por forças militares (estaduais e federais), em 17 de dezembro de 1968, em conseqüência do Ato Institucional Número 5 (AI-5), editado no dia 13 anterior. Eu, juntamente com cerca de mil moradores daquele conjunto, fomos presos e recolhidos à Prisão Tiradentes, em São Paulo. Um outro argumento adicional também usado pelo SNI para essa cassação, foi o de que eu dirigia uma célula comunista em Belém. É oportuno registrar que nunca respondi a nenhum processo sobre qualquer tipo de subversão ou mesmo de corrupção, por ocasião do Golpe Militar de 1964.

Em 1978, tentei pela terceira vez sair do Brasil, desta vez para atender a um convite do professor Henri van Regemorter, do Observatório de Paris, em Meudon, para fazer estágio de pós-doutoramento junto ao grupo de pesquisa desse professor francês, na área da linha de pesquisa que desenvolvia o professor Cattani, com a minha colaboração, e já referida anteriormente, qual seja, sobre Formas de Linhas Espectrais. Apesar de haver também recebido uma bolsa de estudos do CNPq para realizar tal estágio e, também, de haver solicitado licença junto ao MEC para realizá-lo, novamente a “mão invisível’’ da repressão militar impediu-me de sair do Brasil, pois nunca recebi nenhuma resposta àquela solicitação. Informaram-me, extra-oficialmente, aliás, como era o mecanismo usado pela ditadura militar, que esse meu pedido havia chegado fora do prazo. Mais tarde, contudo, soube que o professor Regemorter era persona non grata às autoridades militares e civis brasileiras, já que o mesmo havia assinado um manifesto contra a presença dos Estados Unidos na América, no Vietnã.

Assim, impedido por “orças ocultas’’ de ir ao exterior para aprimorar minha formação científica, restou-me ficar no país e trabalhar. Foi o que fiz, pois ministrei aulas e pesquisei, quer na linha de pesquisa iniciada com minha tese de mestrado, quer numa nova linha de pesquisa que iniciei aqui mesmo em Belém e relacionada à História da Física. Essas linhas possibilitaram-me a publicação de alguns trabalhos em revistas nacionais e internacionais, bem como a publicação de livros. Registre-se que, para a realização dessa tarefa acadêmica, contei com a colaboração do CNPq, quer através de auxílios-viagem realizados no Brasil, quer através de auxílios para a aquisição de material bibliográfico.

No entanto, foi no final do mandato do General-Presidente João Batista Figueiredo que, me parece, um novo tipo de cassação – a patrulhada -, começa a influir nos pedidos de bolsas que fiz ao CNPq, cassação essa que resultou de um comentário que fiz a uma Comissão do CNPq que veio à UFPA, discutir a distribuição de bolsas e auxílios. Vejamos qual. Quando a comunidade de pesquisadores da UFPA cobrou dessa Comissão a razão pela qual recebia tão poucos auxílios do CNPq, o Presidente dessa Comissão respondeu: É porque vocês não pedem. Aí, então, levantei-me e disse-lhe: Isso não é verdade, pois já estamos cansados de preencher formulários de pedidos do CNPq. Além do mais, aduzi, não adianta nada essa vinda de vocês para cá, pois se trata, apenas, de um novo Baile da Ilha Fiscal, já que com a eleição do Trancredo Neves, acabou-se a Aristocracia Ditatorial Brasileira. A partir de março de 1985, entraremos numa Nova República.

Nesse mesmo ano de 1985, tentei pela quarta vez realizar uma bolsa de estudos no exterior. O trabalho em História da Física que estava realizando, permitiu-me receber um convite do professor Jorge Barojas W., do Departamento de Física da Universidade Autonoma Metropolitana-Iztapalapa, no México, para trabalhar em educação e difusão da cultura científica e tecnológica. Assim, solicitei uma bolsa do CNPq que, contudo,me foi negada sob a alegação (extra-oficial) de que mudara de área de trabalho: de Física para História da Física. Ora, isso não é verdade, já que estudar a História da Física há necessidade de estudar Física. Além do mais, continuava a trabalhar em Física, desta vez em outra linha de pesquisa, qual seja, a da Teoria de Propagadores de Feynman para Sistemas Físicos Variáveis no Tempo, assunto, aliás, em que trabalho até o presente momento.

Minha suspeita de que estava sofrendo uma cassação patrulhada foi fortalecida com o seguinte fato. Para atender ao convite do professor H. E. Stanley a fim de participar do STAPHYS 16, que seria realizado em agosto de 1986, em Boston, Estados Unidos, preparei um trabalho naquela linha de pesquisa (posteriormente aceito para apresentar nesse Congresso) e solicitei, então, um auxílio-viagem ao CNPq para lá comparecer. No entanto, foi com surpresa que recebi essa solicitação de volta do CNPq por não atender a prazos, muito embora a data do ofício, no qual me foi comunicada essa devolução, haja sido de 7 de abril de 1986, quando o prazo para inscrição de eventos dessa natureza só se encerrava no dia 10 de abril. Revoltado com essa situação, escrevi uma carta ao então Presidente do CNPq, o que resultou, creio na aceitação de meu pedido. Contudo, o Comitê Assessor de Física e Astronomia o indeferiu.

Recentemente, tive mais uma confirmação desse tipo de cassação. No ano passado (1991), fiz uma solicitação de bolsa de pós-doutoramento para o CNPq, com a qual pretendia estagiar na Europa, durante mais ou menos três meses. Nesse estágio, esperava trabalhar em Pisa, Itália, com o professor Roberto Caffarelli, para desenvolver um artigo sobre o papel do físico italiano Guiseppe Paolo Stanislao Occhialini no desenvolvimento da Física Brasileira. Na França, pretendia discutir com o físico brasileiro Roberto Aureliano Salmeron a participação de físicos paraenses no Projeto Gamma-Brazil. Por fim, em Portugal, intencionava discutir com o grupo do professor Antonio Luciano Leite Videira o trabalho que ora desenvolvo sobre propagadores de Feynman. Contudo, o Comitê de Física negou esse pedido alegando que o tempo solicitado para esse tipo de bolsa era inferior ao estipulado pela já referida burocientistrocracia do CNPq, que é o de seis meses. É oportuno esclarecer que, em off, soube que essa minha pretensão de realizar esse estágio de pós-doutoramento foi considerada como turismo científico, devido ao tempo curto que solicitei para realizá-lo.

Será que os fatos narrados acima, acrescido de que na Assembléia Geral de encerramento do VIII Encontro de Físicos do Nordeste, realizado em Maceió, em outubro de 1990, fiz um pronunciamento no qual pedia um tratamento, por parte do CNPq, diferenciado, mas não paternalista, aos físicos do Norte tendo em vista a penúria das Universidades em que trabalham. Tais fatos, creio, permitem-me questionar se há uma relação de causa e efeito entre as críticas que tenho feito à cientistocracia do CNPq e as negativas que tenho recebido de pedidos de bolsa feito? Ou será apenas uma mera coincidência, apenas interpretada esquizofrenicamente por mim?

Ao concluir, gostaria de fazer mais um comentário crítico-construtivo ao CNPq. Durante os quase 20 anos de relacionamento com esse órgão fomentador de pesquisa, observei que os Comitês Assessores detêm o poder de distribuir os auxílios pretendidos pelos pesquisadores brasileiros. Isso parece ser bom se, contudo, os mesmos não fossem dominados por pesquisadores das principais Universidades Brasileiras que, muitas vezes, não conhecem a realidade das Universidades do Norte de nosso país. Ora, sendo isso verdade, como explicar a grande estrutura burocrática desse órgão de fomento à pesquisa? Já que o poder está nas mãos dos Comitês, não seria preferível ampliá-lo, incluindo pesquisadores de Universidades “menores’’ e reduzir a referida burocientistrocracia do CNPq?

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1. Este artigo publicado no livro Crônicas da Física, Tomo 6 (EDUFPA, 2001) e no jornal Beira do Rio, em junho de 1991.